sábado, 17 de novembro de 2007

Causos-Bichos do Além

Feche os olhos e imagine a cena, querido leitor: você caminha à noite numa via deserta e silenciosa. Teme se deparar com uma assombração, uma visagem, uma abusão, um fantasma enfim. Na hora do relógio dar doze badaladas, o que surge na sua frente é um totó, um lulu, ou seja, um cãozinho inofensivo, quem sabe até mesmo um mero vira-latas. Aliviado, você se aproxima do animalzinho para acariciá-lo. Porém, quando tenta tocá-lo, ele abana a cauda e desaparece no ar, some simplesmente, encanta-se nas trevas. É, amigo: por essa você não esperava!

O preâmbulo serviu para melhor familiarizá-lo com o tema: os fantasmas de animais. Não só alguns seres humanos costumam voltar do Além para assombrar os moradores desse vale de lágrimas. Os bichos também se tornam almas penadas. (Quer dizer, se eles tiverem alma. Essa é uma questão filosófica ou teológica realmente complexa que é melhor não abordamos.) Coincidência ou não, os relatos mais comuns são sobre gatos e cachorros, justamente os animais que mais convivem com as pessoas. As mascotes mais queridas deixam muitas saudades nos donos quando partem dessa para melhor.
Talvez por isso velhos cães que morreram continuam sendo vistos por várias famílias. As aparições são mais freqüentes nos cantos da residência onde os bichos gostavam circular.Há casos em que as pessoas até sentem o cheiro característico dos seus antigos companheiros de quatro patas.
Já os fantasmas dos felinos domésticos são, muitas vezes, percebidos por meio do tato. Os moradores sentem nas pernas o roçar carinhoso dos bichanos que já faleceram. Para alguns humanos, esse contato extraordinário pode ser bastante desagradável. E existem manifestações de animais fantasmas ainda mais desagradáveis. Leia esse relato publicado em 1915 pela revista inglesa Light e reproduzido pelo parapsicólogo Valter da Rosa Borges no livro "Fenomenologia das Aparições":
"Pelas dez horas e meia da noite, minha esposa subiu a seu quarto e, arrumando os travesseiros, lançou o olhar para os pés da cama. Então percebeu ali um grande cão preto, ereto nas suas patas, que pôde distinguir em todos seus os detalhes. Quase ao mesmo tempo, nosso gato, que havia seguido a sua dona na escada penetrou no quarto e, vendo por sua vez o cão, deu um pulo, arqueando o dorso eriçando a cauda, bufando e arranhando o ar.(...)Pouco depois, o cão-fantasma desapareceu...."
Outro animal que também costuma surgir em forma fantasmagórica é o cavalo, quase sempre como coadjuvantes de aparições humanas. São espectros de velhos cavaleiros que se materializam com suas respectivas montarias. Existem vários casos de antigos esquadrões e companhias de guerra dizimados que continuaram aparecendo nos locais das batalhas, ainda acompanhados de seus cavalos, tentando uma vez mais cumprir seu dever.
Casos esses contados desde a Europa Oriental e Inglaterra até as terras platinas que viram a queda de Solano Lopez na Guerra do Paraguai. Resta a pergunta: por que, mesmo no Além, o pobre do cavalo continua fazendo o trabalho duro se as almas penadas são as dos combatentes ainda presos a seus rancores?
E na lista de bichos assombrados não poderia ficar de fora o ser que mais causa repulsa ao homem, a serpente. Fugindo às lendas primitivas, aos seres mitológicos, à simbologia antropológica e teológica, a serpente é um ser que também cabe nesta relação. Existe um relato de cerca de 30 anos atrás de uma imensa serpente que "morava" no Açude de Apipucos, no Recife. Ela era vista na superfície da água, atravessando o reservatório, e quem quer que a observasse morria pouco tempo depois. No Brasil e no mundo soa conhecidos outros relatos sobre ofídios sobrenaturais, se bem que boa parte foi derrotada pelo tempo e pela Igreja Católica.
Quer ainda mais um animal que tem uma versão fantasmagórica? O bode! Ele mesmo, tão popular entre os apreciadores da culinária nordestina. Desde a Idade Média, a figura do bode tem uma antiga associação com o diabo. Em muitas reuniões satânicas, ele aparece como o próprio demônio, o que o fixou no imaginário ocidental como ser ligado ao ocultismo. Mais de um cristão retornou para casa correndo ao encontrar um caprino placidamente comendo grama numa esquina à meia noite. No Recife, cidade fantástica por excelência, o bode demoníaco foi além. Apareceu, pintado de vermelho - na casa de uma senhora rica e idosa, como nos conta Gilberto Freyre, no seu livro Assombrações do Recife Velho:
"O Certo é que estava um dia a tranqüila velhinha, ao entardecer, sentada matriarcalmente à cabeceira da mesa depois do jantar - pois à moda dos antigos, jantava sempre cedo, com dia ainda claro - quando de repente, que há de aparecer? Um bode hediondo. Um desses misteriosos bodes que há séculos se supõem enviados de Satanás aos homens esquecidos de Deus e do próximo. Escarlate com se tivesse saído de um banho de sangue. Inhaca de enxofre à de bode."
Segundo Freyre, as empregadas da casa correram para acudir a velha que gritava desesperadamente. Só ela viu o tal bode vermelho. Graças a muita reza, o bicho maldito nunca mais apareceu naquela residência. Mas eu acredito que ele ainda assombra algumas pessoas. Freqüenta os sonhos daqueles glutões que abusam do consumo de um prato típico da nossa região: a buchada de bode.



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