Quando contava esta história, Dona Carminha falava baixinho, como quem revela um pecado cabeludo ao padre confessor. Era antiga moradora da Cidade Alta de Olinda – lugar de ladeiras, ruas estreitas e casas antigas – e tinha vergonha de relembrar o tal episódio. E será fácil para você, caro leitor, perceber o porquê.
Beata como ela só, Dona Carminha não perdia a missa do domingo no Mosteiro de São Bento. Estava sempre lá, fervorosa, rezando e cantando com afinco. Era seu único compromisso semanal desde a morte do marido, dez anos antes. Criados, os cinco filhos só apareciam de vez em quando. Quase sozinha neste mundo, a viúva dedicava seu tempo a garantir uma passagem segura para o próximo. E tome dizer o terço, fazer novena, participar de procissão, mas sem esquecer de ajudar os pobres - pois fé sem caridade de pouco adianta.
Todavia, num certo domingo de julho, Dona Carminha dormiu demais e perdeu a hora da missa. Resultado de uma conversa entre vizinhas até altas horas da noite anterior. “O senhor sabe: é feio, mas ninguém deixa de falar da vida dos outros”, justificava a viúva. A quebra de rotina provocou uma “gastura” naquela mulher devota. Passou o dia agoniada, imaginando como poderia ter cometido uma falta tão grave.
Quando a noite caiu, quem disse que ela conseguia dormir? Deu dez, deu onze horas, e nada de sono chegar. Não adiantaram nem a garapa, nem o chazinho de camomila. Dona Carminha saiu caminhando pelas ruas do sítio histórico “para tomar um ventinho” e ver se a agonia passava – naquele tempo, era possível passear à noite pela cidade sem temer o encontro com qualquer malfeitor.
Qual não foi a surpresa de Dona Carminha ao ver a igreja do mosteiro aberta e cheia de velas. Às onze e meia da noite, estavam celebrando uma missa! Que benção para uma pobre pecadora - não passaria o domingo sem cumprir a sua obrigação religiosa. Nem reparou no horário pouco convencional em que estava sendo realizada a cerimônia. Entrou na igreja, que estava lotada, e ficou num cantinho, escutando o padre.
O estranho é que o sacerdote falava em latim, como antigamente. Ainda mais estranhos eram os outros fiéis, que usavam roupas antiquadas, como as que Dona Caminha só vira quando era menina. Enquanto reparava nesses detalhes, a viúva começou a sentir estranhos calafrios. Levantou-se para olhar acima multidão e descobrir se o padre era conhecido. Descobriu, para seu horror, que o padre era um esqueleto vestido de batina! Esqueletos também eram as outras pessoas estranhas que estavam na missa!
Dona Carminha saiu correndo e berrando, mas não foi muito longe. A poucos metros da igreja, caiu desmaiada. Foi socorrida de madrugada, pelo entregador de pão. Contou o ocorrido aos vizinhos, mas se arrependeu. Ganhou fama de caduca e virou alvo das conversas dos grupos que se reuniam à noite, nas calçadas, para falar da vida alheia.
Para que você entenda o caso, amigo leitor, e não duvide da sanidade de Dona Carminha: ele foi testemunha da chamada “Missa do Mortos”. Reza a tradição que a cerimônia é realizada pelas almas penadas que esperam por uma chance de entrar no Paraíso. E ai do vivente que entrar sem querer na igreja nessa hora. Está dado o aviso...
quarta-feira, 14 de novembro de 2007
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário