Dois casos recentes de homofobia explícita evidenciam um país insensível a elementos básicos da experiência humanaMais de uma vez vi cena parecida, mas ela sempre me choca. Um bando de meninos de rua, deitados na calçada em frente à uma praça bem conhecida por aqui, gritava chacotas para três bichinhas que passavam tranqüilas por ali. Minha pergunta é sempre a mesma: o que leva excluidos sociais a se sentirem superiores a uma pessoa só por ela ser supostamente homossexual? Por que alguém tão humilhado pela sociedade se sente investido do direito de humilhar pessoas homossexuais? Por que, não importa o que possamos ser, o fato de ostentarmos nossa homossexualidade faz de nós seres desprezíveis aos próprios párias? No caso de um guerreiro como eu, posso contabilizar há alguns anos, ouvindo as mesmas babaquices anti-homossexuais e vendo o sofrimento deles dos efeitos humilhantes delas, que vêm de todos os pontos da sociedade, de alto a baixo.
Quer dizer, o caso dos moleques de rua que faziam gozação às bichinhas não é isolado nem ocorre por estarem alijados das regras sociais. Cito dois casos recentes de homofobia explícita em instituições e pessoas inseridas em contextos de grande responsabilidade social. Em agosto último, a Revista da Folha publicou uma matéria sobre pesquisa na qual a grande maioria dos paulistanos entrevistados aprovava a presença de homossexuais em várias profissões, de presidente da república a jogador de futebol, passando por pastor evangélico e padre católico.
No entanto, o teor da matéria estava em total contradição com as ilustrações aberrantes e constrangedoras, pela grosseria de estereótipos preconceituosos veiculados nelas: cada profissão era ilustrada por um bonequinho desmunhecando de maneira acintosa. O ponto alto era um jogador afetadíssimo, com uma bunda imensa e peluda sentada em cima de uma bola. Me impressionou como um jornal tão moderno e da importância da Folha de S.Paulo pôde veicular, em 2007, idéias discriminatórias típicas dos grotões mais ignorantes do país. Na melhor das hipóteses, alguém desenhou e alguém publicou aquilo achando tudo uma brincadeira inocente, como se ainda fosse possível não se dar conta de que um grande número de brasileiros estava sendo vítima de humilhação e chacota.
O outro caso, bastante conhecido, é o do juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, que em julho deste ano mandou arquivar a queixa-crime apresentada pelo jogador Richarlyson, do São Paulo, contra um cartola que o chamou de homossexual num programa de televisão. As justificativas do juiz para sua sentença baseiam-se em preconceitos homofóbicos que beiram a crueldade. De saída, ele considera o futebol um “jogo viril, varonil, não homossexual”. E diz que se Richarlyson for homossexual “seria melhor que abandonasse os gramados”. Se insistirem em jogar bola, que os homossexuais joguem entre si e formem sua própria federação – para não se misturar com os héteros, entre os quais se encontram os heróis das grandes copas. No final, alega que a presença de homossexuais iria quebrar o entrosamento e o equilíbrio do esporte.
Senhor juiz, ser homossexual é um dos inúmeros componentes da personalidade e maneiras de ser – assim como se é branco ou negro, gordo ou magro, jovem ou idoso, com uma profissão X ou Y, etc. Por que o preconceito insiste em tomar a parte pelo todo? Por que um homem que tem talento futebolístico não pode seguir essa profissão, ao preferir sexualmente outros homens? Em que sentido aquilo que eu faço na cama irá interferir na minha profissão? Que lógica existe nisso? Por que um homem perde sua virilidade se beijar outro homem, se gozar com ele, se der o cu pra ele? Cito Jean Genet, quando dizia que um homem que beija outro é um homem ao duplo. Com base em que dado real alguém ainda pode pensar que dar o cu leva um homem a perder a virilidade? Será que o esfíncter que relaxa tem alguma conexão secreta com os músculos da munheca e torna a voz mais aguda?
No dicionário, diz-se que viril “é próprio de homem” e virilidade é sinônimo de masculinidade. Mas não há nenhuma lista de características obrigatórias que definem a masculinidade. Existem homens com pêlo e sem pêlo, homens grandes e pequenos, homens fortes e frágeis, homens de cabelos curtos ou longos, homens que usam saiote ou não (como no caso dos escoceses ou árabes). A menos que a definição carregue um preconceito intrínseco, com certeza não se pode confundir virilidade com qualidades determinadas por pendores culturais. O que é considerado viril em sociedades ocidentais pode ser o oposto em tribos da África ou entre os esquimós. Em muitas culturas antigas, inclusive na Grécia clássica, ser homem era um dom recebido de outro homem, através tanto da relação anal quanto do sexo oral passivo. Receber em si o esperma de um homem adulto era a maneira de botar em funcionamento as glândulas e o espírito masculino num adolescente.
Os argumentos vexaminosos do tal juiz são os mesmos que se ouvem todos os dias nos botecos mais desinformados dos cafundós do Brasil ou das periferias caóticas das grandes cidades. Esses argumentos são formados no caldo de cultura do preconceito arraigado. Um juiz como esse, que supostamente estudou leis e tem como objetivo profissional exercer a justiça, não poderia se submeter a tão baixo nível de compreensão do humano. Sua ignorância é um exemplo vivo das mazelas brasileiras, e pode explicar desde a impunidade até a corrupção endêmica em tantas áreas do poder. Esse senhor é a prova mais acabada da democratização da burrice, que percorre todas as classes do país, e de como a escassez de um debate original torna o panorama do Brasil contemporâneo um vasto deserto de idéias e um terreno minado por arcaísmos, em pleno século 21. É como se a história brasileira caminhasse mais devagar do que a história universal. Apesar das aparências deslumbradas, o juiz Manoel Maximiano evidencia como o Brasil tem sido pouco exigente e cada vez mais embotado na sua capacidade de questionar, enquanto sociedade. Seu embotamento intelectual auto-explica como foi possível surgir tal excrescência no terreno do judiciário.
Depois de assistir a anos de reiterada ignorância, acho que eles se sentem de saco cheio de ser discriminado e ofendido, quase sempre do mesmo jeito grotesco e irracional, apesar dos tempos mudarem. Isso me deixa cada vez mais convencido de que a homofobia é hoje o maior sintoma da nossa inviabilidade crônica enquanto país. De fato, há aí uma mescla de ressentimento, hipocrisia e atraso pré-moderno que se coaduna à perfeição com o mar de lama e conformismo em que chafurdamos enquanto sociedade. A ausência de sensibilidade para o direito de amar evidencia um país insensível a elementos básicos da experiência democrática e, eu diria mesmo, da própria experiência humana. Isso faz jus à nossa história: fomos a última nação do mundo a libertar seus escravos negros.
Ficar de saco cheio é desconfortável, confesso, mas leva à indignação, que leva à ação. Várias ONGs de direitos homossexuais entraram com representação judicial contra o juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho. É importante que ele – e todos os que comungam das suas idéias homofóbicas – sinta na pele como seu conceito de virilidade está longe da realidade.




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